A desconsideração da personalidade jurídica e a ética empresarial

A desconsideração da personalidade jurídica, em sua modalidade clássica, foi criada pelos tribunais estadunidenses e chamada inicialmente de “disregard of legal entity” ou “lifiting the corporate vail”, cuja tradução literal seria “desestimação da personalidade jurídica” ou “levantamento do véu corporativo”. Referido instituto fora introduzido no ordenamento jurídico brasileiro por Requião Rubens, o qual afirma que “pretende a doutrina penetrar no âmago da sociedade, superando ou desconsiderando a personalidade jurídica, para atingir e vincular a responsabilidade do sócio” (REQUIÃO, Rubens. Aspectos Modernos do Direito Comercial. 1.ª edição. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 67).

Trata-se de instituto processual pelo qual é possível superar o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para atingir, dentro de seus limites, o patrimônio de sócios, diretores ou administradores responsáveis pela pessoa jurídica e que, por meio dela, tenham praticado abuso do direito na utilização da personalidade jurídica, ou seja, que tenham agido ilicitamente por meio da prática de atos fraudulentos (v.g. STJ, AgInt no REsp n. 1.942.017/MG, 4.ª T. Rel.: Min. Antônio Carlos Ferreira, j. 09.05.2022 e STJ, AgInt no AREsp n. 1.826.448/PR, 4.ª T., Rel.: Min. Raul Araújo, j. 29.11.2021).

O direito brasileiro consagrou, pelo art. 50 do CC, que a desconsideração ocorre quando há abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. O § 1.º do referido artigo conceitua o desvio de finalidade como a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para prática de atos ilícitos. Já o § 2.º e seus incisos conceituam a confusão patrimonial como a ausência de separação de fato entre os patrimônios envolvidos, seja pelo cumprimento repetitivo, pela sociedade, de obrigações que seriam dos sócios, ou vice-versa (inciso I), pela transferência de valores sem efetivas contraprestações (inciso II), ou por outros atos de descumprimento patrimonial (inciso III). No mesmo sentido, os arts. 134 a 137 do CPC passaram a regulamentar o tema tratando-o como instituto processual.

Sendo assim, é certo concluir que a desconsideração da personalidade jurídica somente será aplicada quando houver a chamada disfunção do uso da personalidade jurídica por parte de seus controladores. Por assim ser, a desconsideração da personalidade jurídica não se trata única e exclusivamente de instituto processual e legal utilizado para combater fraudes e abusos de direito, mas também de uma solução ética para combater o comportamento reprovável de sócios, diretores, administradores e empresários.

Voltando os olhos para a desconsideração da personalidade jurídica como uma solução ética para uma sociedade caída e não apenas como um instituto processual, pode-se dizer que a ferramenta ultrapassa as barreiras de um instituto legal e processual que visa coibir o comportamento abusivo de sócios e empresários, servindo igualmente como um anteparo moral e ético para regular as relações comerciais e empresariais da sociedade.

Com o surgimento da sociedade pós-moderna, a ética passou a ser, de certa forma, deixada de lado, e deixou de regular as relações existentes entre o indivíduo e a sociedade. O indivíduo que antes se preocupava em pautar todas suas relações na moral e nos bons costumes, hoje, muitas vezes, preocupa-se em utilizar de meios e ferramentas do direito com o único propósito de lesar e fraudar credores.

Os chamados devedores profissionais criam conglomerados econômicos e estruturas societárias única e exclusivamente para a prática de atos ilícitos. Nesse sentido, infelizmente, a criação de holdings, que deveria ter o condão inicial de abrigar e proteger o patrimônio, por vezes é utilizada para fraudar e lesar credores, incorrendo na disfunção do uso da personalidade jurídica. Não é incomum ver a utilização do termo “blindagem patrimonial” para atrair empresários que procuram alternativas para evitar que seus bens particulares sejam impactados por abusos cometidos pelas pessoas jurídicas que controlam.

Assim como o direito visa a preservar princípios morais e éticos, os institutos do direito devem ter a mesma finalidade. O direito foi concebido para ordenar a convivência entre indivíduos e a sociedade. Dessa maneira, o exercício do direito, mesmo que privado e individual, deve atender uma finalidade social e, ao se permitir que o exercício de um direito pessoal, como a criação de holdings ou grupos econômicos, tenha finalidades ilícitas, permite-se um ato contrário à ética e à moral.

Por tal motivo, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica não só visa impedir a disfunção do uso da personalidade jurídica, mas também fazer cumprir a ética e moral nas relações empresariais entre os indivíduos de uma sociedade. Não se espera que empresários sejam autorizados a criar e se utilizar de personalidades jurídicas para fraudar credores ou praticar atos ilícitos, sem que haja uma devida responsabilização dessas práticas.

Em paralelo, felizmente, é possível observar a crescente aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil desde a sua regulamentação processual. Em uma breve pesquisa no site do Tribunal de Justiça de São Paulo, observa-se que no ano de 2015, foram contabilizados 5.042 acórdãos tratando sobre a desconsideração da personalidade jurídica, enquanto que no ano de 2022, foram proferidos 14.946 acórdãos sobre a mesma temática. Esse aumento também é observado em pesquisa no Tribunal de Justiça do Paraná, o qual, no ano de 2015, teve 299 acórdãos proferidos sobre o tema, saltando para 1.105 registros no ano de 2022. Já no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, no ano de 2015, havia o registro de 134 acórdãos, enquanto que no ano de 2022, o número aumentou para 311 resultados.

Quer-se com tudo isso dizer que a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica tem se mostrado eficaz no combate da utilização disfuncional da pessoa jurídica, alcançando, de certa forma, seu objetivo. É claro que o caminho a percorrer pelo direito brasileiro ainda é longo, todavia, o aumento da aplicação do referido instituto evidencia e reforça, desde já, a busca pelo combate à impunidade empresarial.