A dação de bens móveis como forma de extinção do crédito tributário decorrente do ICMS

O ICMS – imposto sobre circulação de mercadorias e serviços – foi estabelecido pela Lei Complementar n.º 87/96, cujo artigo 1.º prescreve sua definição e os entes responsáveis por sua instituição, que são os Estados e Distrito Federal.

Quando o contribuinte se exime de pagar o referido imposto, o Estado, na condição de sujeito ativo da obrigação tributária, tem legitimidade para demandar o responsável pelo pagamento. O procedimento para cobrança está disposto nos artigos 142 e seguintes do CTN – Código Tributário Nacional.

De acordo com o mesmo diploma, existem causas de suspensão e de extinção do crédito tributário. As primeiras estão previstas no artigo 151 do CTN, enquanto as causas de extinção estão previstas no artigo 156.

Conforme se esclarecerá a seguir, uma das causas de extinção do crédito tributário decorrente do ICMS é a dação em pagamento de bens móveis, que, muito embora não esteja contida nas hipóteses do artigo 156 do CTN, tem sido aceita pelos tribunais pátrios, sobretudo pelo Supremo Tribunal Federal.

Como já mencionado, o CTN prevê em seu artigo 156  as causas de extinção do crédito tributário, quais sejam, respectivamente: (i) o pagamento; (ii) a compensação; (iii) a transação; (iv) a remissão; (v) a prescrição e a decadência; (vi) a conversão de depósito em renda; (vii) o pagamento antecipado e a homologação do lançamento nos termos da norma contida no artigo 150 e seus §§ 1.º e 4.º, do mesmo diploma; (viii) a consignação em pagamento, nos termos da norma contida no § 2.º do artigo 164 do mesmo diploma; (ix) a decisão administrativa não passível de reforma, mesmo por ação anulatória; (x) a decisão judicial que já transitou em julgado; e, por fim, (xi) a dação em pagamento de bens imóveis.

Sobre a última possibilidade de extinção do crédito tributário abarcada pelo inciso XI do aludido dispositivo – a dação em pagamento – tem-se que a norma legal permite expressamente sua ocorrência através de bens imóveis. O referido inciso foi incluído pela Lei Complementar n.º 104/2001 e sua interpretação pode ser complementada através da perspectiva do artigo 4.º e incisos I e II da Lei n.º 13.259/2016, os quais dispõem que: “a dação seja precedida de avaliação do bem ou dos bens ofertados, que devem estar livres e desembaraçados de quaisquer ônus, nos termos de ato do Ministério da Fazenda; e a dação abranja a totalidade do crédito ou créditos que se pretende liquidar com atualização, juros, multa e encargos legais, sem desconto de qualquer natureza, assegurando-se ao devedor a possibilidade de complementação em dinheiro de eventual diferença entre os valores da totalidade da dívida e o valor do bem ou dos bens ofertados em dação”.

Entretanto, muito embora a norma do inciso XI do artigo 156 do CTN seja específica quanto à possibilidade de se efetuar apenas a dação de bens imóveis, e a despeito dos dispositivos que complementaram sua aplicação, o STF e os tribunais estaduais já se manifestaram acerca da possibilidade de extinção do crédito tributário através da dação de bens móveis.

Compulsando os julgados do STF e dos tribunais estaduais sobre a temática aqui debatida, nota-se que a questão foi analisada e permitida a dação de móveis em algumas oportunidades, as quais serão brevemente comentadas a seguir.

Uma decisão emblemática acerca da temática em apreço foi a proferida no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1917/DF, que teve como Relator o Ministro Ricardo Levandowski, cuja íntegra do acórdão foi veiculada no Diário de Justiça aos 24 de agosto de 2007. Da análise do referido acórdão, entende-se que a Corte defendeu a impossibilidade de realização da dação de bens móveis para quitação de dívidas tributárias no Distrito Federal, uma vez que, caso o ente editasse algum dispositivo de lei que aceitasse a prática da dação de móveis, o ato seria manifestamente contrário ao princípio da licitação.

Contudo, em outro momento, o STF deliberou de forma diversa. Isso ocorreu no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 2405/RS, relatada pelo Ministro Alexandre de Moraes, cuja íntegra do acórdão foi veiculada no Diário de Justiça aos 02 de outubro de 2019, no qual, em apertada síntese, restou definido que cada unidade estadual da federação tem autonomia para decidir sobre as regras de pagamento das dívidas tributárias em aberto em seu território, e por esse motivo, a dação de bens móveis não seria inconstitucional.

Nesse sentido, ao citar Luciano Amaro, o Relator mencionou que: “O rol do art. 156 não é exaustivo. Se a lei pode o mais (que vai até o perdão da dívida tributária) pode também o menos, que é regular outros modos de extinção do dever de pagar tributo. A dação em pagamento, por exemplo, não figurava naquele rol até ser acrescentada pela Lei Complementar n. 104/2001; como essa lei só se refere à dação de imóveis, a dação de outros bens continua não listada, mas nem por isso se deve considerar banida” (STF, ADI n. 2405/RS, Rel.: Min Alexandre de Moraes, j. 20.09.2019).

Assim, em consonância com este último entendimento, admite-se que cada unidade estadual da federação tem autossuficiência para decidir se aceita ou não a quitação de débitos oriundos de obrigações tributárias por meio da dação em pagamento de bens móveis, pois, ainda que a hipótese não esteja prevista no CTN, a mesma não contraria o entendimento da Constituição Federal, porquanto o rol do artigo 156 do CTN não é taxativo.

Sobre os as duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade mencionadas é válido ressaltar que, embora tenham abordado temáticas diferentes, ambas enfrentaram a questão da dação em pagamento de bens móveis como forma de quitação de dívidas tributárias.

Ainda, é importante mencionar que, como constou na íntegra do acórdão da mencionada ADI n.º 2405/RS, é necessário que o ente da federação tenha tal modalidade de extinção da dívida tributária contida em leis municipais ou estaduais, não cabendo ao contribuinte realizar o ato de forma deliberada e sem a expressa previsão legal.

Neste mesmo sentido, vale registrar que antes do julgamento do mérito de ambas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade pelo STF, os tribunais estaduais locais também já tinham se manifestado sobre esta celeuma. É o caso do Tribunal de Justiça da Bahia, que no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 29481-9/2004, em 27 de setembro de 2006, decidiu ratificar o entendimento das normas contidas na Lei Estadual n. 9207/2004, cujo primeiro artigo assinala a possibilidade de extinção do crédito tributário mediante a dação de bens móveis.

Deste modo, entende-se que, ao admitirem a extinção de dívidas tributárias por meio da dação de bens móveis, os entes da federação não estão contrários à Constituição Federal – desde que haja previsão nas leis estaduais locais.  Isto porque, de acordo com a Suprema Corte do país, em que pese a dação em pagamento de bens móveis não esteja insculpida nas opções prenunciadas no artigo 156 do CTN, cada Estado tem liberdade para instituir diretrizes acerca do pagamento de pendências tributárias de seus contribuintes.